Pedaços de papel...
... com Gonçalo Manuel Tavares
O senhor Valéry era perfeccionista.Só tocava nas coisas que estavam à sua esquerda com a mão esquerda, e nas coisas que estavam à sua direita com a mão direita.
Ele dizia:– O Mundo tem 2 lados: o direito e o esquerdo, tal como o corpo; e o erro surge quando alguém toca o lado direito do Mundo com o lado esquerdo do corpo, ou vice-versa.
Seguindo escrupulosamente esta teoria, o senhor Valéry explicava:
– Eu dividi a minha casa em dois, com uma linha.
E desenhava…
– Defini um lado direito e um lado esquerdo
Lado direito Lado esquerdo
– Assim, para os objectos do lado direito reservo a minha mão direita e vice-versa.
Nesse momento, perante uma dúvida colocada por um amigo, o senhor Valéry explicou:
– Aos objectos muito pesados coloco-os exactamente com o seu centro na linha.
E desenhou…
– Assim – explicava o senhor Valéry – posso carregá-los utilizando a mão esquerda e a mão direita, desde que tenha o cuidado de os transportar com o seu centro exactamente sobre a linha divisória.
– Para os objectos leves – continuou o senhor Valéry – não necessito de tantas preocupações: mudo-lhes a posição apenas com uma mão. A mão certa, claro.
– Mas como manter esse rigor em todas as situações? – perguntou-lhe o mesmo amigo: quando o senhor Valéry está de costas, por exemplo, como sabe qual a parte direita e a esquerda da casa?
O senhor Valéry mostrou-se quase ofendido com a questão, pois não gostava de ser posto em causa, e respondeu, bruscamente:
– Eu nunca viro as costas às coisas.
(Isto era o que o senhor Valéry dizia, mas na verdade, para nunca se enganar, havia pintado todo o lado direito da casa, incluindo os seus objectos, de vermelho, e todo o lado esquerdo de azul. Assim se percebia melhor a verdadeira razão de o senhor Valéry ter pintado a sua mão direita de vermelho e a esquerda de azul. Não tinha sido um acto estético, como ele dizia. Era bem mais do que isso.)
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