quarta-feira, maio 10, 2006

Pedaços de papel…



... com Pepetela(*)

O mal é da televisão

Camarada escritor:

Escrevo-lhe esta carta, conforme me pediu, para contar o que sei sobre o cão pastor-alemão. Agradeço me corrija as faltas e a pontuação, para sair bem no livro.
Aí vai…
O meu pai apareceu um dia com o cão em casa. Disse andou sempre a seguir-me, não me quer largar mais. Eu fiquei contente, um lindo cão e inteligente. Demos-lhe o nome de Jasão, foi o meu pai que escolheu o nome, pois gosta muito de lendas gregas. Jasão aprendeu logo o nome, era esperto.
Quando eu ia para o Instituto, onde estou a estudar Planificação, o cão queria ir comigo. Às vezes até foi. Ficava à espera que eu saísse das aulas e acompanhava-me a casa. Sempre grande e calmo, um senhor. As garinas rodeavam-no logo a fazer festas, ele deixava, até cheirava por debaixo das saias e provocava risos malandros. Quem aproveitava da popularidade dele era eu. Por isso até que gostava da sua companhia. Mas o meu pai xingava-me sempre para o levar. Achava não ficava bem o filho dum responsável, mesmo se pequeno, andar com um cão. Isso era prática de outros tempos que devíamos combater: os filhos dos governadores ou senhores coloniais é que andavam assim! Podíamos ter o cão, mas em casa, sem dar nas vistas, para que as massas não fizessem paralelos incómodos com os tempos antigos.
Mas vou explicar agora como foi que a tragédia aconteceu.
Um dia cheguei a casa e estava o meu pai com o António Radiador (nome do bairro). O António é um bom mecânico, mas tem dificuldades em trabalhar por falta de peças para os carros. Vai pois fazendo uns biscates, em baixo dum imbondeiro, que o deixavam viver mas mal. Diz que podia enriquecer, se quisesse. Bastava entrar no esquema dos carros roubados. Aceitar desmontá-los para os refazer com outras carcaças. Ele é honesto e nunca aceitou entrar nisso. Continua pobre, como muitos.
Dizia o meu pai:
− Vocês não compreendem nada de política. Não trabalhamos, não resolvemos, não trabalhamos… Sabes quantas reuniões fiz hoje? Quatro! Imaginas o que são quatro reuniões?
− Quatro reuniões, não imagino, não. Em termos práticos, o qué que isso significa?
− Ora. Decisões, esclarecimentos, análises…!
− Os esclarecimentos e as análises não me interessam.! Que coisas decidiram?
− Várias
− Por exemplo?
− Possas! Já que queres, vou dizer-te, embora seja confidencial. Numa decidimos que vamos organizar um seminário de sensibilização para as massas. Claro que terei de ir abrir o seminário, fazer o discurso. Se calhar, também o encerramento. Mas aí pode ser que vá outro, duma estrutura superior.
− E mais?
− Noutra decidimos que a situação está difícil. Abastecimentos insuficientes, falta de transportes, etc . ... Conheces bem demais o que vai por aí.
− Portanto não descobriram nada de novo. Se foi para descobrir o que eu já conheço… E que decidiram?
− que vamos fazer uma reunião mais ampla para analisar as causas objectivas e subjectivas e depois talvez fazer um seminário para se estudar as medidas a tomar.
− Não tenho razão? E que mais decisões em quatro reuniões?
− Tu és chato mesmo! Que é preciso combater a indisciplina. Mas possas, parece um interrogatório.
− E é mesmo − disse o António Radiador.
− Não sei como te aturo com as tuas observações.
− Deixa lá de lado o aturar e não aturar. E como vão então combater a indisciplina?
− Oh, não ficou muito bem definido. As opiniões divergem, não se chegou ao consenso. Uns são pela explicação, outros pela linha dura, há até cacimbados que já põem tudo em causa. E tu pareces um deles! A política não é como a mecânica.
− Isso já percebi há muito tempo. Na mecânica não pode haver desculpas. Ou o carro anda ou não anda. As mãos e a cabeça é que têm de consertar o que está estragado, não as palavras.

*(Excerto transcrito da obra "O cão e os Caluandas", Editorial Nzila)
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